Devo confessar que o último post do Wilson me serviu de inspiração para a cerveja dessa semana. A Sour Ale é um estilo no qual se esperam características únicas, como acidez e azedume, elementos que dificilmente se encontram em outros tipos de cerveja. E, tal como o lúpulo para as IPAs, as Sour Ales contam com as leveduras e bactérias como estrelas das receitas.

 

Eu, assim como todos que já experimentaram uma cerveja desse estilo, jamais esquecerei a primeira vez que me deparei com uma. Há algum tempo atrás, um grande amigo meu (também cervejeiro) ao retornar de uma viagem que fez à Bélgica, abriu uma dessas e me ofereceu: “Piá, experimente”. Simples assim; ao levar o copo pronto para tomar o primeiro gole, o título desse post me veio imediatamente à cabeça: “Humm, essa cerveja está estragada… quem sabe com a viagem, sei lá. A Bélgica é longe e ele trouxe a cerveja na mala, vai que azedou…”. Mas, notei também que meu amigo me olhava ansioso por minha reação; a hesitação quando senti o aroma da cerveja foi a deixa para ele começar a dar risada e dizer: “Vai fundo, pode tomar que é assim mesmo. Você não imagina o quão popular é esse estilo por lá…”. E tomei; o primeiro gole com surpresa e os demais ainda tentando entender o que estava bebendo.

Nessa altura do texto, já não é mistério que a cerveja que meu amigo me ofereceu era a Duchesse de Bourgogne, da centenária cervejaria Verhaeghe. Atualmente sei que ela é a mais clássica e icônica das Sour Ales. Por isso essa semana eu peço licença às nossas cervejas locais para escrever sobre esse símbolo belga.

Sendo bem específico, a Duchesse é do estilo Flanders Red Ale, uma ramificação da Sour Ale proveniente da região de Flanders (ou região Flemish), na Bélgica. Porém, assim como várias outras Sour Ales, seu sabor distinto vem do trabalho de bactérias como Lactobacillus e Pediococcus. São famosas por entregar uma acidez bastante acentuada à cerveja. Chega a ser incrível o “estrago” que esses seres microscópicos provocam no aroma e no sabor da bera.

No copo, a cerveja possui uma coloração bem escura, que passeia entre o marrom, o âmbar e o vermelho conforme se aumenta a claridade. O aroma, único e indistinguível, é azedo. Um jargão mais sommelier diria que são notas balsâmicas, mas não vejo problemas em dizer que lembra um cheiro de vinagre mesmo. Um pouco mais de insistência permite sentir um aroma frutado, que lembra ameixa seca. Na boca, a carbonatação se assemelha a um frisante, com bolhas pequenas e “pontiagudas”, porém muito agradáveis. E aí, finalmente, vem o sabor. Honestamente, é um espetáculo, sem medo de exageros. O azedo persiste, mas logo cede espaço a um excepcional sabor frutado de cereja e ameixas (corroborando o aroma). Por vezes chega a lembrar um vinho. É notável o equilíbrio entre acidez, doçura e álcool (6,2%). Dificilmente alguém poderia esperar um sabor desses tendo como base o azedume do aroma. É uma cerveja realmente especial e que faz jus a toda sua tradição. Para conseguir esse resultado, a Duchesse é maturada em barril de carvalho e o que vai para a garrafa é um blend entre amostras jovens de 8 meses e envelhecidas de 18 meses.

Há pouco mais de um ano eu tive a oportunidade de ir à Holanda, a trabalho. Tal foi a minha surpresa que em um supermercado comum a Duchesse de Bourgogne dividia a prateleira com as Heineken’s e Amstel’s da vida, inclusive com preços similares. Isso em uma cidade com menos de 100 mil habitantes. Da mesma forma, foi boa a surpresa em encontrar a Duchesse nas prateleiras da God Save the Beer, ainda mais sabendo que ela está sendo importada por uma empresa nacional. Isso demonstra que o interesse nas Sour Ales está crescendo em nosso país.

Felizmente, nós já temos excelentes representantes do estilo. As mais conhecidas provavelmente são as da linha Sour Me Not da Way, feitas com adições de acerola, morango e graviola. Eu tomei duas delas (acerola e morango) e posso dizer que elas são diferentes da Duchesse por serem mais ácidas do que azedas, além de menos alcoólicas. Elas não levam Bretta’s em suas receitas e imagino que essa seja a razão da diferença. Por outro lado, em um Domingod desses eu tive a imensa felicidade em experimentar a ótima Mark the Shadow da Bastards feita com adição de Brettanomyces, leveduras muito conhecidas por oferecer azedume à cerveja. O resultado foi incrível.

Eu fico animado com essa popularização do estilo Sour Ale por aqui, ainda que, em minha opinião, esteja ocorrendo a passos ainda lentos.

Por mais Sour Ales nacionais, proost!

 

Trilha sonora: The 11th Hour – “Lacrima Mortis”.

P.S.: Cometi um engano na primeira versão desse post ao escrever que a Duchesse de Bourgogne continha Brettanomyces em sua receita. O azedume dela me fez pensar que era um produto dessas leveduras, mas depois da publicação obtive a confirmação de que elas não estão lá. Correção feita, vamos abrir mais uma!